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Magic é Arte?
Uma discussão sobre as cartas além do objeto de jogo.
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02/12/2016 14:00 - 6.805 visualizações - 23 comentários
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Olá a todos! Eu sou João Bueno, graduando em História da Arte, jogador de Magic há mais de uma década (desde noob até os GP’s da vida) e um defensor das mídias secundárias enquanto objetos transformadores! Você deve estar se perguntado: no que essa última parte importa? Bem, é pra isso que estou aqui hoje: falar um pouco pra vocês sobre como este jogo tão viciante e que a gente gosta tanto pode ser mais do só um jogo – ou, talvez, não.


Você já ouviu ou falou das cartas de Magic: The Gathering exclusivamente por suas ilustrações? Sim, elogiar uma carta pela arte produzida, comprar uma carta foil porque aquele “desenho” fica muito lindo brilhando ou mesmo por colecionar cartas de um artista específico e querer compartilhar o esforço com os outros? Tudo isso é algo que está relacionado ao valor simbólico das cartas de Magic, e não por seu valor de uso.


Magic: The Gathering é um jogo, claro, e o apetrecho para que este jogo funcione (assim chamaremos nossa “coisa” principal) são as cartas que ele contém, fisicamente ou digitalmente. Não é necessário que haja nada mais do que a descrição útil de cada uma dessas cartas em alguma matéria ou código, como papelão ou pixel, para que o jogo ocorra. A arte, então, seria totalmente descartável, já que não agrega valor de uso ao apetrecho que ela é. Mas por que as ilustrações existem? É evidente que é muito mais legal ter acesso à visualização daquilo que teoricamente é a concepção da imagem palpável de uma criatura, um encantamento, um artefato, etc., mas é bem provável que essas ilustrações atinjam, de forma consciente ou inconsciente, um patamar de apreciação muito maior do que o da mera visualização de uma ideia, e isto se dá principalmente pelos fatores que coloquei no começo do texto, de valor simbólico.


Imaginemos que as cartas de Magic tivessem as ilustrações como de costume, mas feitas diretamente por uma matriz igualitária – como um software único de criação das imagens. Sabe aqueles avatares de videogame, onde você muda o cabelo, as roupas, mas no fundo percebe que não mudou muito? Então, Magic ainda teria a representação das imagens propostas pelas cartas, mas não teria algo que faz com que elas sejam apreciadas com encanto, surpresa ou desgosto: a variedade do artista que a produz, tão como as vinculações que ela proporciona de forma exclusiva com alguns jogadores ou colecionadores. Também é importante, nesse ponto, ressaltar que a Wizards of The Coast, literalmente falando, não contrata “artistas” de forma concreta, como costumamos falar, mas designers, desenhistas, ilustradores. Pode haver aqueles que foram consagrados enquanto artistas (por nós, jogadores e colecionadores, ou mesmo pela própria Wizards, mas que estão fora de um mundo “oficial” das artes visuais), como é o caso de John Avon – que é designer gráfico, mas colaborou com obras como as de Stephen King, e mesmo em sua página oficial é descrito como “ilustrador”. Enfim, neste contexto, mesmo não possuindo “artistas oficiais”, é evidente que as cartas de Magic são dotadas de algo que nos convoca à sua imagem, que é a exclusividade que o apetrecho possuí de acordo com o artista. A necessidade é subjugada para dar vazão ao entretenimento inflado junto da contemplação. 


Bom, quando falamos de contemplação, e o assunto é arte, nos lembramos dos quadros, esculturas e arquiteturas dos grandes mestres e passamos a outro patamar: que talvez a arte das ilustrações seja Arte, com A maiúsculo – se é que isso ainda é válido de se dizer sobre arte (mas isto seria assunto para outro dia).


Se dependêssemos da visão pós Idade Média, onde a ideia de arte clássica ressurge para definir um objeto enquanto arte, talvez as funções do Magic o impedissem de sê-lo, mas as suas ilustrações estão bem próximas de uma ideia da Renascença enquanto representação – a perfeição da perspectiva, corpos bem elaborados, respeitando a anatomia, movimentação e volumes quase que saltando da carta (tá, talvez a carta Stasis não...); ou seja, toda a questão visual está de acordo, mas a ideia de ser uma forma do homem de reivindicar o conhecimento da natureza ou de qualquer resgate de um passado Grego, não. 

 

Stasis, 1993. Fay Jones.

 

Entretanto, essas ideias são do século XIV, e caminharam e se modificaram até o século XVII, e muito mais depois. Hoje, após toda a arte moderna e as transformações que a arte contemporânea causou com as “coisas” que foram ou são consideradas artes, nós podemos analisar as cartas de Magic por outro viés, assim como o cubismo ou a arte conceitual passou a ser.


Os apetrechos que são as cartas só possuem função intrínseca ao jogo em um momento: durante o jogo. Em qualquer outro momento ou local, elas não são apetrecho, não tem uso funcional. Você pode vendê-las, troca-las, enquanto produtos, mas o jogo se dá por sua utilização direta. Neste caminho, mais uma questão: as pastas onde guardamos as cartas, e o apreço que temos por cartas sem valor monetário se dão também por isso. Nem sempre estarão somente cartas caras em uma pasta, mas aquelas que gostamos por algum motivo também. Estes critérios aproximam cada vez mais as cartas de Magic de uma ideia de arte, assim como no colecionismo de telas – seja de artistas renomados ou aspirantes – nas compras de objetos pertencentes a figuras importantes – como esculturas que são levadas para antiquários – entre diversos outros.


É justamente devido a sua função “coisal” que as cartas de Magic podem ser mais que jogo. A arte contemporânea, muitas vezes, depende apenas que a instituição do mundo das artes a legitime para que essa seja encarada como arte. Um crítico, um historiador da arte, um curador, etc. 


Além disso, a sátira, o ready made – termo utilizado para se referir a objetos não pertencentes ao mundo da arte, mas que são apresentados em conceito ou espaço destinado para esta – abriram portas para discursos que antes eram desprezados, ao mesmo tempo criticando certos estereótipos e ferramentas utilizadas pelo mundo das artes para defender um determinado objeto e atacar outro.

 

American Gothic, 1930. Oil on Beaver Board, 78 x 65.3 cm (30 3/4 x 25 3/4 in.) Signed and dated lower right on overalls: GRANT / WOOD / 1930

 


Orcish Settlers, 1997. Pete Venters.

 

Talvez o que falte é apenas que as cartas de Magic sejam validadas enquanto arte – contemporânea? – ou quem sabe, suas atribuições comecem a ser levadas por outro lado: a transformação, que citei logo no inicio desse artigo. Se o Magic é capaz de transformar gostos e conceitos de belo através de suas imagens, porque esta ainda é apenas produto, entretenimento? Quem sabe também, em outro nível, a própria função deste apetrecho não o transforme em arte? Um outro artigo sobre as transformações que o jogo em si causa nos jogadores e naqueles ao seu redor pode ser válido. Creio eu que Magic: The Gathering, já lapidou muitos perfis pessoais, impulsionou ideias, das mais simples as acadêmicas, e continua fazendo isso constantemente.


Não é difícil encontrarmos pesquisas de tempos em tempos nos grupos de Magic nas redes sociais sobre trabalhos de conclusão de curso ou mesmo sobre as questões de não terem gostado de uma arte específica de um autor. Muitas vezes questões como “quem fez esta carta?” são esquecidas por pessoas mais distraídas, e acabam por julgar o trabalho de um artista como péssimo, incluindo no discurso seus trabalhos antigos, mas, em um segundo momento, se dão conta de que este mesmo artista é o criador de uma outra arte que foi do agrado daquele que fez a crítica negativa. Essas questões são, a meu ver, importantes para que o jogo alcance novos públicos, seja visualizado de forma cada vez maior pelas mídias e mesmo pela sociedade de modo geral. 

 

Olivia, Mobilized for War, 2016, e Olivia Voldaren, 2011. Eric Deschamps. Você chegou a presenciar a discussão sobre estas cartas? O debate girou em torno de “o artista que fez a Olivia antiga é muito melhor do que o que fez a nova” (?). É, pois é.

 

Seja neste caminho da análise mais simplória, apenas comparativa (como nas cartas acima), ou mesmo em algo mais embasado, utilizando as ferramentas que citamos aqui, provenientes do mundo das artes e de seus integrantes, é muito entusiasmante perceber o desenvolvimento dessas questões – às vezes até inconscientes, já que não é todo dia que se vê a utilização do termo “arte” para designar Magic – dentro deste contexto, e espero que o tema se alastre cada vez mais entre entusiastas da arte como eu (ou você!). Além disso, pelo simples fato destes objetos serem presentes em discussões/dissertações, há uma atribuição simbólica que os conecta a um patamar maior do que sua função enquanto coisa permitiria, e, portanto, destacar este subtópico supracitado é também uma forma de argumentar sobre a possibilidade da arte no Magic. Afinal, se estão falando disso, alguma importância deve ter.


Por outro lado, as ilustrações serem o que são – ilustrações – permitem justamente que esse debate possa alcançar camadas de discurso que normalmente são ocultas – seja pelo seu não pertencimento a academia ou pelo descaso do mundo das artes. O primeiro passo para esse tópico foi dado, agora depende de todos nós!
 

E então, você considera este debate válido? Se sim, é de grande valia seu posicionamento, traga suas ideias! Se não, compartilhe conosco: quais os motivos que te levam a negar as cartas de Magic e suas ilustrações enquanto objeto de arte?
 

Até a próxima!

 

REFERÊNCIAS

 

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte. [s.l.]. Cosac & Naify. 2015. 448p.

BOURDIEU, P. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp; Porto Alegre, Zouk, 2007. 560 p.

HEIDEGGER, Martin. A origem da Obra de Arte. Lisboa. Edições 70. 1977. 73p.

 

Comentários
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- 10/12/2016 02:23:13
Eu sempre achei que as ilustrações eram o "Q" a mais no MTG. Embora ache o jogo otimo, a arte das ilustrações é fenomenal. Quem nunca tentou montar um set de apac land, as lands basicas de Saga de Urza ou portal. São belíssimas. Poucing Jaguar, etc. ótimo artigo e bacana de ver que mesmo tento anos o jogo ainda tem sua graça
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- 08/12/2016 17:11:58

Não acho que seja falta de personalidade. Acredito que com o tempo a Wizards foi definindo e uniformizando o estilo de arte que eles queriam nas cartas, por isso que não se vê mais esse tipo de ilustração. Não que eu não goste delas. Mas não é que os artistas não possam expressar um estilo próprio. Muitos deles não são empregados fixos, são free lancers, se a Wizards quiser o trabalho deles, vai chamar, mas se eles não quiserem fazer no estilo que a empresa quer, é só recusar o trabalho. Eles não são obrigados a fazer.

Dito isso, Magic é arte sim, e não é só pra um propósito, até porque, como dito no artigo, jogar não é a única forma de se interagir com a carta como objeto. Lembro que muito antes de decidir jogar eu já curtia apreciar as ilustrações e tentar relacioná-las aos nomes das cartas e tal. Inclusive todo o trabalho de design, tanto da própria parte visual quanto do que a carta faz, de relacionar o efeito com o flavor e tal, envolve um esforço criativo considerável.

Parabéns pelo artigo, gostei muito, li com a minha irmã que é formada em Artes Visuais e nós concordamos com vários pontos.

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- 05/12/2016 19:21:30
Se até funk tem gente chamando de arte, não vejo motivo para o magic não ser.
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- 05/12/2016 18:56:42


Concordo. Quinton Hoover, de Planta carnívora e Regeneração, (a antiga) e Phil Phoglio são exemplos de estilos que desapareceram do Magic

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- 05/12/2016 16:58:54
Excelente texto. Bem fundamentado, com ilustrações e referências que servem aos leigos e aos entendidos em História da Arte. Ao mesmo tempo, levantar a discussão sobre se o Magic é "arte ou não" não me pareceu uma temática capaz de suscitar debate propriamente dito, visto que o texto já se posiciona e, provavelmente, os leitores que terminaram o artigo concordam com esse fato (de que é arte), como podemos perceber nos comentários.
De qualquer maneira, excelente texto para uma ótima leitura!
Uma sugestão: tenho certeza que existe no mundo do Magic artes de todas as matizes históricas. Seria bem legal um trabalho de pesquisa que pudesse virar um artigo detalhando algumas características de movimentos artísticos (surrealista, impressionista, romântica) e correlacionando com as cartas. Ficaria lindo!
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